Alvo de muitos jovens idealistas, detentora de uma imagem forte e politizada que garante um status social relevante, a Polícia Militar é, tradicionalmente, representante do orgulho de muitas pessoas, haja vista que em seu nome há um vínculo com a essência de justiça que, de forma quase mística, produz no coração de muitos conservadores e sonhadores o sentimento de proteção, segurança, legalidade e retidão, contudo a realidade vivida por seus servidores é bem diferente da ostentada ou percebida pela maioria.
Tecer críticas ou elogiar a polícia não é tarefa difícil, afinal todos temos inúmeros argumentos para isso, alguns com base nas informações repassadas pela imprensa de oposição outros com base na credibilidade e nas fortes ações de marketing produzidas por seus administradores, mas o fato é que ambos agem com parcialidade voltada a deturpação do convencimento da maioria da população, a maior dificuldade das pessoas está em distinguir as ações do Estado das ações de cada integrante.
Dom, um jovem de classe média baixa, foi um dos idealistas que teve profunda admiração pela instituição que patrulhava em seu bairro violento, a polícia militar que silenciava homens temidos e que era responsável por prisões de “vilões” quase imbatíveis que dominavam, através de imposição do medo, as condutas dos moradores da comunidade.
A vida do jovem era repleta de limitações relacionadas a onde ir ou estar, em quase todas suas pretensões havia algum impedimento relacionado a risco de morte, roubo e violência em geral, a julgar pelo fato de que a maioria dos seus amigos de infância perderam suas vidas por terem trilhado nos caminhos do crime ou foram arruinados pela drogadição, todavia, na contramão de tanta desgraça, Dom tinha como esperança a Polícia Militar que garantia o mínimo de sua liberdade naquele bairro, fato que o fez interiorizar ainda mais admiração pela profissão.
Após a conclusão do ensino médio, assim como ocorre com maioria dos jovens pobres, o rapaz sentiu a necessidade em constituir uma fonte de renda, e, por óbvio, restava a ele apenas encontrar um trabalho que o aceitasse, tendo em vista que naquela ocasião era totalmente inviável iniciar um curso superior em virtude do alto custo.
A experiência trabalhista do jovem foi digna da maioria dos brasileiros, trabalhou em alguns lugares sem registro, em outros foi demitido e não recebeu o que tinha direito, ficou desempregado batendo nas portas de agências de empregos, tudo isso enfrentando a rotina de transportes coletivos lotados e sendo, esporadicamente, vítima de roubos e furtos.
Aos vinte anos de idade o rapaz entendeu a dinâmica de ser brasileiro, percebeu que muitos trabalham para poucos e para tornar-se um dos poucos era necessário ter muito, o conceito de injustiça foi inserido em sua mente e coração através de um duro processo empírico. Em uma de suas buscas por uma qualificação profissional descobriu que para fazer parte daquele grupo que colocava ordem no bairro e ter uma remuneração até três vezes maior do que já havia recebido, bastava apenas ter o segundo grau, portanto quando terminou de ler aquela notícia no jornal dos concursos, Dom já estava com seu espírito tomado pelo desejo de tornar-se policial militar, adquirir uma posição de respeito e combater injustiças, tendo em vista que até ali ele só conseguia esquivar-se e temer as injustiças que presenciava.
O aspirante a soldado policial militar acreditava que a injustiça se fazia presente onde homens de atitude não estavam, afinal era isso que via na comunidade e até aquele momento presumia que a justiça era tudo aquilo que fosse capaz cessar atos moralmente questionáveis, portanto, para Dom, onde estivessem presentes policiais, juízes ou qualquer outro representante do Estado, os injustos estariam ausentes, o sonhador confiava nos ideais da Constituição porque ouvia falar, mas ainda não conhecia a suposta “elite” e nem os administradores do seu país.
Com muito otimismo realizou provas para o cargo de soldado PM e durante as etapas dos concursos ouvia histórias semelhantes a sua, meninos querendo um espaço reservado para homens, motivados a combater o crime e a dar uma resposta contundente aos que o dominavam inocentes impondo o medo.
Dentre algumas frustrações durante as etapas do concurso, houve uma ocasião que reprovou em um exame psicológico e participou de uma “devolutiva”, uma sargento o levou a uma sala reservada e, dentre várias questões abordadas, a policial e psicóloga deixou claro ao candidato que ele não sabia o que estava fazendo ali e que era muito crítico e imaturo.
Em 2004 chegou a ultima etapa do concurso novamente e quando saiu o resultado final, ao lado do seu nome estava a descrição “APTO”, finalmente Dom havia garantido sua vaga dentro da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Conquistar uma vaga na PM parecia algo revolucionário para aquele candidato, uma aquisição de poder e o fim de uma era de subordinação a malfeitores, porém só parecia, Dom não sabia que ele seria apresentado a um Estado que poucos conheciam e teria o dever incondicional de servi-lo.
No Centro de Formação de Soldados, em Pirituba, foi descoberta uma nova realidade, lá todo corpo de instrutores parecia temer que seus alunos pensassem ou abrissem suas bocas, sargentos que gritavam e quando não tinham razão apelavam para o que chamavam de “chequinho”, uma anotação disciplinar que tirava o direito as folgas dos soldados, ou seja, uma forma de calar a maioria dos que pensassem em questionar.
Não era para ser idealista, a ordem era ser fiel a soberania da PM, ideia que era pregada diariamente desde o início da manhã até o fim da tarde.
Nas primeiras duas semanas de treinamento foi ensinado, de forma bem subliminar, que soldado pm tinha o direito de obedecer ordens e os questionamentos poderiam ser interpretados como afrontas que seriam combatidas com todo rigor do regulamento policial militar.
Já nos primeiros quinze dias ficou muito cristalino para aquele recruta que um soldado não deveria ter coração, ideais e nem tampouco sonhar com inovações, portanto em seu coração já estava implantado o desejo de desistir daquela carreira, mas isso não foi possível em virtude da sua condição social, Dom havia investido muito dinheiro com material para o curso de formação, inclusive situação bastante frustrante, visto que apesar da conquista de um cargo público teve que pagar pelos uniformes da instituição.
Dentro daquele batalhão-escola o aluno policial teve que aprender a reverenciar os superiores do alto escalão e acatar tudo que eles diziam como verdades quase que absolutas, foi imposta uma realidade onde até a alimentação dos oficiais superiores era de melhor qualidade que a dos demais, inclusive o ambiente favorecia a separação dos indivíduos em conformidade as suas hierarquias, Dom estava sendo treinado para entender que suas atitudes dentro da PM seriam em prol dos superiores e regidas por eles, independentemente de haver concordância, isonomia ou proporcionalidade, identificou a anulação da sua individualidade e de seus valores pessoais.
Foram aproximadamente dezoito meses de treinamento, marchando, praticando tiro, aprendendo noções de legislação penal e principalmente penal militar e o regime disciplinar da instituição, aulas ministradas sempre focando que os riscos de encerrar a carreira no presídio militar “Romão Gomes” eram grandes e que a exoneração era uma realidade que esperava aqueles que discordavam do que ali estava sendo doutrinado.
Os hinos e as ordens unidas eram praticadas com veemência, caso contrário o sargento, que era um fiscalizador implacável, colocaria o aluno ineficiente em evidência, além de suspender as folgas dos fins de semana, nada havia mudado, antes o medo era daqueles que assumiam a marginalidade, agora o medo era de punição e novamente Dom estava com suas ações sendo dirigidas pelo medo.
Antes de ser policial seguia as regras de “um poder paralelo” que disciplinava o bairro, ao assumir o cargo policial, prontamente e de forma bem discreta, em contrapartida nada pacífica, recebeu as ordens que serviriam para sua vida funcional, ou seja, calar a boca, reverenciar seus superiores, cumprir todas suas ordens e deixar o coração e a mente em casa para que o seu “eu” pudesse sumir e a PM aparecer.
O término do curso foi também o fim de um sonho, a Polícia Militar bloqueou um cidadão para que ele se transformasse no soldado e foi assim que enviaram Dom para atender ocorrências há 65 quilômetros de sua casa, no bairro Capão Redondo.
Em 2006 lá estava Dom com seu uniforme cinza, uma arma na cintura, patrulhando dentro da viatura que ostentava o símbolo da PM na porta, contudo o sentimento que prevalecia era o medo de ser exonerado ou de ser preso, tendo em vista que, apesar de ter sido doutrinado a oferecer obediência incondicional aos superiores, nas ruas eram dois soldados, portanto restava acertar, seja por disciplina, por sorte ou arcar com consequências que poderiam comprometer toda sua história de vida.
O segundo choque de realidade não demorou a ocorrer, o soldado desmotivado e receoso descobriu que na instituição não tinham apenas idealistas, lá também estavam inseridas algumas pessoas das quais ele acreditava que seriam seus oponentes no âmbito externo, profissionais com um perfil totalmente oposto ao que se esperava, e, por óbvio, uma minoria que fazia a diferença negativamente, assim como vivia em seu bairro passou a viver na PM, só que agora não havia a sensação de segurança ao ver uma viatura dobrando a esquina, tendo em vista que ele era o policial que estava na viatura.
As ordens dos comandantes eram resumidas em não levar problemas até eles, portanto a missão era atender ocorrências da forma menos “barulhenta” possível, tal atitude também implicava em não gerar descontentamento de pessoas influentes ou que tivessem alguma “relação” com algum superior hierárquico, caso contrário o “chequinho” de agora seria equivalente a uma transferência para um local ainda mais distante ou trabalhar em um horário ruim, além de perseguições administrativas.
Pouco a pouco histórias de colegas que ingressaram junto a Dom na polícia foram apresentando desfechos prematuros, exonerações por supostas indisciplinas ou envolvimento com ilícitos, mas grande parte acabou absorvendo a dinâmica do sistema, a maioria aprendeu exercitar o silêncio, fazer “bicos” para complementar a renda e ignorar que o Estado era mentiroso, mas que para servi-lo em paz seria melhor fechar os olhos para tal realidade.
- Alguns aceitaram aquela forma de estar inserido na sociedade e buscaram inserção entre o alto escalão ou assumiram a posição de braço forte do Estado enganador.
Já que o crime era algo difícil de ser combatido por ser a Polícia Militar mero instrumento político do Poder Executivo, restou aquele soldado buscar alternativa para afastar-se das áreas mais críticas, portanto foi voluntário e serviu no Batalhão de Policiamento de Trânsito, local onde certificou que a instituição era “cão de guarda” de ricos, cartão de visita do Governador e também uma indústria de multas, Dom trabalhou sob pressão para elaborar autos de infrações e recolher veículos em operações, fato que o deixou indignado em virtude da covardia dos oficiais do alto escalão que, notoriamente, exerciam uma atividade predatória que vitimava principalmente pessoas comuns que circulavam em ruas tranquilas e que não tinham condições de manter seus veículos, por outro lado os administradores de polícia ignoravam bandidos que circulavam com veículos roubados nas áreas mais perigosas.
Não havia lógica e nem justiça no tal de Comando de Policiamento de Trânsito que não prendia ninguém e só servia para recolher e multar veículos daqueles que estavam em locais seguros, inclusive seguro para os policiais.
Não restavam mais dúvidas para o miliciano, se haviam bandidos nas comunidades, as organizações criminosas estavam na política e a polícia era só uma “maquiagem”, uma ilusão para favorecer o parasitismo político que domina o país, sendo assim restava apenas desistir da farda antes que ela fosse subtraída a qualquer pretexto e de forma desleal.
A cada tentativa de iniciar um curso universitário eram impostas diversas adversidades administrativas, horários alternados para que o soldado não estudasse, as relações foram ficando cada vez mais difíceis, Dom não suportava ouvir discursos hipócritas de coronéis que subestimavam a inteligência de seus subordinados ao tentar ludibriá-los com o propósito de sustentar um sistema imundo de exploração da qual eles, superiores, ocupam uma posição privilegiada de apenas ficarem nos bastidores coordenando a manutenção das operações ardilosas do Poder Executivo.
Nas ruas o povo, quase todos alienados, por vezes admiravam o soldado por crerem no marketing que era e é promovido pelos administradores de polícia, em outras ocasiões hostilizavam severamente por influência da mídia de oposição, fatores que geraram em Dom a convicção de que não havia esperança para a polícia porque a democracia estava corrompida por falsários.
Em nove anos como servidor da Polícia Militar, Dom viveu em um ambiente institucional tomado pela arrogância e prepotência de boa parte de seus chefes, presenciou o sofrimento diário de soldados e cabos que, para sustentar suas famílias, toleravam a frustração e viviam sob um regime absolutista que tinha como principal motivação a ameaça, assim como também teve o desprazer de enterrar dois amigos que morreram em virtude da função, perdeu vínculos com alguns amigos que optaram, após serem seduzidos pela sistemática imunda, a caminhar as margens do moralmente aceitável.
Um cenário lamentável repleto de históricos que teve como protagonistas homens e mulheres vencidos pela depressão, alcoolismo e afastamento de suas espiritualidades e consequentemente uma instituição com índices elevados de suicídios e famílias oprimidas pelo egoísmo estatal que faz de seus militares “máquinas executoras” de seus planos.
Os praças da PM são heróis!
O policial militar de menor graduação, aquele que trabalha nas ruas, o que está mais próximo a você, merece o respeito e acolhimento das pessoas de bem, a grande maioria ingressou com altruísmo e teve sonhos destruídos por força dos vícios políticos que há no Brasil, dentro da polícia existem aqueles que são braço direito do Governador e os que são aliados do povo, não é salutar julgar um soldado, cabo ou sargento pelo cumprimento de ordens, há necessidade de mudanças nas atitudes de políticos e comandantes que tem feito da Polícia Militar um “monopólio” de lideranças políticas e estes, por sua vez, praticam o parasitismo voltado ao benefício da elite financeira do país.
A Polícia Militar conta com um efetivo predominante de excelentes praças, alguns bons oficiais, mas todos subordinados a interesses que não condizem com a supremacia do interesse público, por isso é mais que necessário encerrar a era do “coronelismo” e o povo participar da vida administrativa da PM, cobrar do governador e dos comandantes locais.
Cada praça tem uma história de dificuldades, lutas e adversidades que são enfrentadas diariamente perante seus comandantes, principalmente pelos conflitos de valores internos proporcionados pela “ditadura” do Governo que é administrada por coronéis e seus oficiais.
Dom, que ostentava o registro funcional 118833-0 não logrou êxito em suas pretensões de contribuições junto a instituição, conseguiu apenas esquivar-se da tirania do alto escalão, respondeu um processo criminal em virtude do extravio de um carregador de uma arma, contudo mesmo sendo inocente, através de processo administrativo ainda lhe aplicaram um dia de permanência, ou seja, punição para manter o recado que foi dado desde o Centro de Formação de Soldados, o “direito” de calar a boca e reverenciar os comandantes.
Em 2014 o soldado assinou “sua carta de alforria”, solicitou exclusão e não faz mais parte dos quadros da instituição, hoje cumpre a missão de compartilhar verdades capazes de libertar o maior número de brasileiros possível, verdades como as que aqui foram narradas.
Brasileiro, tome posse do que é seu, eles confundem os entendimentos para permanecerem no controle da situação, a Polícia Militar existe para servi-lo, não é propriedade do coronel e nem do governador e só você pode mudar o quadro lamentável que está sendo vivenciado até os dias atuais.
Dom deixou de ser policial militar, mas ainda torce por ela, acredita no suor de cada soldado, cabo e sargento que luta contra o sistema imundo e contra o crime organizado nas ruas, o ex pm tem muito orgulho de um dia ter sido o SD 118833-0 e trabalhado ao lado de homens e mulheres que tinham o mesmo propósito e que juntos minimizaram o problema institucional.
Hoje Dom já não é mais um jovem, porém tem a mesma motivação e conta com você para ajudar a mudar a PM, sonha em vê-la administrada por pessoas de caráter e trabalhando para o povo.
Dom continua servindo a população, honra um lema: ser aliado, protetor e amigo!
A Polícia Militar não é como a maioria enxerga, é nossa parceira, porém tem inimigos que a influenciam negativamente.
2 comentários
Que texto do “caroço”, meu Brother!!! Não tenho nem como descrever o tamanho da perplexidade que me constrange. Tão rico em detalhes que só confirmaram as impressões que as experiências por mim vividas, causadas por essa corporação, me trouxeram durante a vida, gerando uma certeira visão diferenciada.
São realidades que a Defensoria Pública ignora e a Promotoria de Direitos Humanos despreza.
Moradores parecem ser os vilões por terem seus apartamentos e desejarem ordem.